Escuta do Sussurro: a escuta corporal como ação pedagógica para a percepção e composição ...

RESULTADO DE INVESTIGACIÓN: Tesis de Maestría /Doctorado: “La escucha del susurro: percepción y composición de ritmos en el trabajo del actor (2010) - Programa de Pós-Graduación Maestría / Doctorado en Teatro, Universidad del Estado de Santa Catarina, Florianápolis, Brasil
Resumo*
Este artigo aborda a reflexão teórica-prática na busca de ações pedagógicas para o ator perceber, entender e compor ritmos em seu trabalho de atuação. Para compreender o conceito de ritmo foram consultados estudiosos da área da música como Mário de Andrade, Bruno Kiefer, Sérgio Magnani e Murray Schafer - a fim de apreender a sua estrutura. Como possibilidades de ações pedagógicas e de exercícios para o ator apreender o conceito de ritmo, conjetura-se sobre a “escuta corporal dilatada” ou “escuta do sussurro”, idealizada como meio de ampliar as capacidades do ator de percepção e de composição do ritmo. Para pensar esta “escuta dilatada”, os autores pesquisados foram os músicos ocidentais John Cage, Pierre Schaeffer, Dalcroze e a diretora norte americana, Anne Bogart. Refletir sobre A “Escuta Coporal Dilatada” surgiu como uma provocação, em 2008 e 2009, durante a pesquisa prática da dissertação intitulada, “A Escuta do Sussurro: percepção e composição de ritmos no trabalho do ator”, defendida em 2010, no Programa de Pós-Graduação Doutorado-Mestrado em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina.
Palavras-chave: Escuta Corporal Dilatada, Ritmo, perrcepção, Universo Métrico e Fluido
Ao iniciar os estudos sobre o ritmo no trabalho do ator, a primeira ação foi a de pesquisar sobre o conceito de ritmo. Entender, discutir e refleti-lo não é tarefa nada simples e exige cautela. Dificuldade aparentemente comum, presente em todos os trabalhos acadêmicos consultados sobre o assunto, como a tese de Jacyan Castilho de Oliveira, O Ritmo Musical da Cena Teatral (2008: 37) que, diante deste fato, escreve: “impossível parece ser a tarefa de encontrar definições pontuais e unívocas sobre o conceito de ritmo, sua etimologia e derivações”. Divergências estas que, além de conceituais e interpretativas, localizam-se no próprio fenômeno rítmico - em sua etimologia, composição e relação com outros fenômenos no tempo e no espaço - possibilitando inúmeros pontos de vista.
Na língua portuguesa, ritmo é originado de rhythmus, palavra latina correspondente à grega rhythmòs. Os autores parecem concordar com o fato de que rhythmòs é da mesma raiz de rhéo[1] (rio) que significa fluir, correr e escorrer. (BUENO, 1974: 3545 e 3550). Raiz que aparece, também, nas grafias da palavra ritmo de vários outros idiomas, como o inglês, francês e alemão. Esta informação, inserida na etimologia da palavra ritmo, portanto, sugere interpretações como a de Eugênio Barba (1936) e Nicola Savarese (1945): “Literalmente, ritmo significa ‘um meio particular de fluir’” (1995: 211). Assim como a de Murray Schafer: “originalmente, ‘ritmo’ e ‘rio’ estavam etimologicamente relacionados, sugerindo mais o movimento de um trecho do que sua divisão em articulações” (1991: 87). Rapidamente, é possível concluir que ritmo significa, refere-se e caracteriza eventos contínuos, fluidos, sucessivos e ininterruptos, ou seja, que não prevêem pausas e rompimentos. Um infinito ir e vir de vida, movimento e sopro.
Contudo, há outras fontes que apontam que, ritmo, etimologicamente, não prevê apenas o fluir. O The New Grove Dictionary of Music and Musicians (1980: 805) coloca que o conceito de fluir, vastamente difundido, foi sendo substituído por outro mais antigo que aproximava rhéo da raiz “ry (ery) ou w’ry” que significa puxar, prender, deter. Contudo, o dicionário não apresenta os motivos da mudança. Há ainda, como demonstra a pesquisa da Profª. Drª. Jacyan Castilho de Oliveira (2008: 40), o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa (1989), no qual consta a palavra grega rhythmòs como originária da palavra arithmetiké (aritmética), uma vez que esta contém “o elemento de composição arthimós que significa ‘número’”. Além disso, o trabalho da pesquisadora Vilma Leni Nista Piccolo, tese intitulada Uma Análise Fenomenológica da Percepção do Ritmo na Criança em Movimento (1993), problematiza a interpretação do conceito rhéo em sua acepção de fluência, ao citar Georgiades, estudioso da língua grega e de música. Segundo a pesquisadora, Georgiades acreditava que a descoberta do ritmo, para o grego, não estava vinculada apenas aos conceitos de fluir e correr, mas também a um movimento limitado, já que, neste período, “tinha-se a idéia de medida, como uma ordem rígida do movimento” (PICCOLO, 1993: 17).
Portanto, aparece outra possibilidade de interpretação da raiz grega rhéo e, conseqüentemente, novas interpretações para o conceito de ritmo que implicam no seu entendimento, na sua função e manipulação enquanto elemento das artes como o teatro, a música e a dança. Esta noção de medida, de ordem e rigidez, por sua vez, sugere noções conceituais como estas que os dicionários trazem: “medida, compasso, movimento musical, processo sonoro que se repete com regularidade de tempo em tempo, de espaço em espaço, criando a cadência. Ordem de sucessão de fenômenos dentro de um espaço de tempo sempre o mesmo. Som que se repete com intervalos certos” (BUENO, 1974: 3550) e a do Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa que, entre outras definições mais específicas, define ritmo como “movimento ou ruído que se repete, no tempo, a intervalos regulares, com acentos fortes e fracos” (FERREIRA: 2004). Há, ainda, o músico e pesquisador Sérgio Magnani (1996: 96), afirmando que “o ritmo é a ordem suprema da música, assim como de todas as coisas – o princípio de suas leis matemáticas”. Definições que, por muito tempo, foram valorizadas e mantidas por vários estudiosos, principalmente, no campo da pedagogia musical ao substituir fluência por rigor matemático, conforme consta no Dicionário Grove.
O ensino musical europeu, nos séculos XVIII, XIX e início do século XX, privilegiou a técnica, a eficiência, a escrita, a notação musical, cujo repertório era fundamentalmente ocidental[2] (SANTOS, 2001: 12-13). Metodologia que influenciou o encenador russo Constantin Stanislavski (1863-1939), o qual definia ritmo como uma “relação quantitativa das unidades – de movimento, de som – com o compasso determinado como unidade de extensão para certo tempo e compasso” (2005: 252). Além de gerar uma série de métodos - de acordo com José Eduardo Gramani (1996: 11) - preocupavam-se apenas com os elementos métricos do ritmo e com a duração dos sons.
Os pensamentos e metodologias musicais que previam o ritmo como um fenômeno estritamente métrico, cuja percepção máxima, domínio e entendimento seriam daquele que melhor dominasse sua contagem ou batida exata, começaram efetivamente a ser questionados no início do século XX. Resultado de uma série de transformações gradativas que o pesquisador Cintra localiza ainda no século XIX, com a atitude de alguns compositores, como o alemão Richard Wagner (1813-1883), o russo Igor Stravinsky (1882-1997), assim como os brasileiros Heitor Villa-Lobos (1887-1959) e Chiquinha Gonzaga (1847-1935) de se recusarem a continuar presos ao “sistema tonal enquanto eixo estruturador do discurso musical” (CINTRA, 2006: 58). Este ato, além de outros, provocou as mudanças de paradigmas em relação à criação, à interpretação e à escuta da música, influenciando na pedagogia e no modo de entender os seus elementos estruturais, ocasionando em trabalhos originais como o do pedagogo e compositor Jaques-Dalcroze (1865-1950) que alia, à sua prática de ensino musical, o movimento corporal.
Temos, portanto, até o século XX, uma concepção de ritmo que valorizava a sua característica métrica. Os textos citados acima de Schafer e Barba demonstram aberturas para novas concepções, ampliando as interpretações sobre o fenômeno rítmico, retomando a sua idéia de fluidez. Mas ressaltar ora as discussões que compreendem as qualidades fluidas e ora as métricas do ritmo, não objetiva encontrar referências suficientes sobre cada uma delas, a fim de escolher uma e, a partir disso, pensar o ritmo no trabalho do ator. Apresentá-las, tem o intuito de apontar que, no ritmo, um dado observado na bibliografia pesquisada, não há a prevalência da fluidez ou da métrica. Ele não é um fenômeno uno. Na verdade, ele é duplo e paradoxal. Paradoxal no sentido que Gilles Deleuze concebe o conceito de paradoxo:
[...] a potência do paradoxo não consiste absolutamente em seguir a outra direção, mas em mostrar que o sentido toma sempre os dois sentidos ao mesmo tempo, as duas direções ao mesmo tempo. [...] O paradoxo como paixão descobre que não podemos separar duas direções, que não podemos instaurar um senso único, nem um senso único para o sério do pensamento, para o trabalho, nem um senso invertido para as recreações e os jogos menores (DELEUZE, 2000: 79).
A dificuldade de dissertar sobre o ritmo está justamente no fato de que ele é um fenômeno que abarca tanto o fluido, quanto o métrico. Assim como claro e escuro não se excluem, fluidez e métrica, no ritmo, também não. Esta é uma postura adotada por algumas pesquisas que o colocam como um fenômeno complexo em que estas duas possibilidades, de modo algum, excluem-se ou se sobrepõem. Uma faz parte da outra. Cada uma tem seu domínio, mantém suas características e, como numa corrente, dentro de suas particularidades, cada qual vai interligando-se e, ao fazer isso, valoriza e qualifica a outra. Fluir, medir, pausar, seguir, continuar e descontinuar não são ações isoladas são “ações rítmicas” ou “ações do ritmo”.
O Universo Métrico e Fluído do Ritmo
Pensar o ritmo como um fenômeno duplo e paradoxal compreende diversos elementos que contribuem tanto na sua percepção quanto na sua composição, como o tempo e a duração. De acordo com Andrade, “tudo o que se desenvolve no tempo tem um ritmo” (1995: 131), e enquanto fenômeno que acontece no tempo, tem uma determinada duração. Isto por que, ao acontecer no tempo, o ritmo dura, permanece e se prolonga por um determinado momento temporal. Tempo entendido, aqui, como “sucessão dos anos, dos dias, das horas, etc., que envolve, para o homem, a noção do presente, passado e futuro” (FERREIRA: 2004) ou como Mário de Andrade chama, Tempo Intelectual. A duração é apontada, tanto por Bruno Kiefer como por Mário de Andrade, como elementar para a compreensão, percepção, manipulação ou composição do ritmo numa obra artística, já que, de acordo com os autores, nós nos fixamos, basicamente, no tempo de duração dos eventos. Ao se fixar na sua duração, esta é medida, organizada e comparada entre a mais longa, a mais curta ou a de igual valor. Por isso, para eles, o tempo, só tem aplicabilidade à vida, se o dividirmos em períodos e a cada período com uma duração determinada.
E para medir a duração do ritmo ou do Tempo Rítmico, como Mário de Andrade nomeia, é necessário ter uma medida comum e fixa. A música, por exemplo, usa as seguintes unidades fundamentais que Andrade as descreve como: a Unidade fisiológica fundamental, cujo parâmetro de medida são os eventos fisiológicos do corpo como os batimentos cardíacos e respiratórios; e, a segunda, Unidade artística, que é artificial, incerta e permanece somente enquanto durar o evento artístico (ANDRADE, 1995: 73-74). A Unidade fisiológica fundamental é o equivalente ao termo andamento[3] da música, que designa a velocidade na qual cada nota será tocada na música, geralmente sugerida pelo compositor da obra. Já, a Unidade artística é a pulsação[4], ou pulso, uma marcação constante que pode ser executada, sonoramente, por meio do metrônomo ou pelas batidas dos pés. A sua constância ajuda o músico a se orientar para não variar a velocidade e, ao mesmo tempo, ajuda-o na medição das notas, dos compassos e de cada trecho da música. Devido a estas características de organizar, medir e regular os eventos rítmicos, é possível concluir que Unidade fisiológica fundamental (andamento), unidade artística (pulsação), unidade intelectual (tempo) e duração, assim como o acento que será discutido logo a seguir, são elementos que abarcam, basicamente, o universo métrico e organizacional do ritmo.
Além destes elementos, a teoria musical aponta outros que também influenciam e contribuem na percepção e composição do ritmo. A intensidade - o quão forte ou fraco um som é tocado e reverbera no espaço e tempo - é um elemento importante para o ritmo, tanto na sua constituição e percepção, quanto na ação sobre ele. De acordo com Kiefer, “o fator intensidade é tão importante e corresponde a uma necessidade nossa que, se o instrumento tocasse sons de mesma intensidade, nós ouviríamos sons de intensidade desigual” (KIEFER, 1984: 25). Portanto, há dois fatores que englobam a intensidade: a nossa necessidade de perceber as variações de força que o som apresenta, bem como as variações que são intencionais, provocadas pelo músico na sua execução. Naturalmente, quando um som é tocado, ele vai perdendo a sua força e nós percebemos esta variação. Nesta transição natural de intensidade, o ritmo se modifica, qualificando a variação. As variações intencionais são o que a música chama de dinâmicas. As dinâmicas ajudam no desenho e na criação da atmosfera da melodia que compreendem tanto as variações de intensidade (forte, piano, pianíssimo), quanto a transição de uma intensidade a outra (crescendo, diminuendo, sforzando).
Pensar em intensidade, dinâmica, relaxamento e esforço é importante porque são responsáveis pela expressividade do ritmo. Um trecho musical tocado piano, por exemplo, tem uma estrutura rítmica que se manterá a mesma se for tocada forte. Mas, a sonoridade deste trecho mudará e, consequentemente, a expressividade do ritmo também. Por isso que estes elementos são considerados do universo fluído do ritmo, já que, como elementos causadores das descontinuidades, ultrapassa a métrica, causando deste modo, a sua fluidez. A expressividade de uma ação ou som, seja ele realizado mais rápido ou mais lento, dependerá exclusivamente se ele for piano ou leve e pequeno (no caso do gesto), relaxado ou tenso. No teatro, Intensidade e Dinâmica pode ser entendido pelos seguintes conceitos de Laban: Intensidade como Esforço “impulsos internos a partir dos quais se origina o movimento” (1978: 32) e Dinâmica como Energia, que se caracteriza como a distribuição e organização da força na realização de movimentos, qualificando-os como leves, pesados, delicados, bruscos, etc.
Neste processo descontínuo de empregar esforço, energia, qualidades ou dinâmicas, – piano, forte, leve, relaxado - surge outro elemento fundamental: o acento. Entre um som e outro de uma batida ou de um pulso, ouvimos sempre um mais forte que o outro e este soar mais forte é chamado de acento. Estes acentos, sutis ou não, são verdadeiros guias que, assim como o tempo, ajudam a percepção humana a apreender e organizar o fenômeno rítmico. Partindo deste pressuposto, Mário de Andrade afirma que o ritmo se organiza por meio de duas unidades: a que chama de Temporal fisiológica e a Afetiva espiritual, que é o acento. Deste modo, longe de ser um ponto que possui uma intensidade mais forte, o ritmo é um “ponto de referência escolhido pelo ser psíquico sem que tenha para isso uma razão determinante”, o que conduz o autor a concluir que, o acento é uma entidade afetiva, já que é o humano quem o determina. Por isso que o acento é tanto do universo métrico quanto do universo fluido do ritmo. Do mesmo modo que contribui para metrificar o ritmo, é o acento quem valoriza a fluidez do evento.
E assim exposto e discutido cada um dos elementos que compõem o ritmo, é possível visualizá-lo com a seguinte estrutura:
Universo Métrico
(organização, ordenação dos fragmentos dos eventos)
Tempo Intelectual (tempo);
Tempo Rítmico:
- Unidade fisiológica (andamento)
- Unidade artística (pulsação);
Duração;
Acento;
Universo Fluido
(cuida da expressividade)
Intensidade/Esforço;
Dinâmica/Energia;
Acento;
Uma vez dialogando com este conceito de ritmo que valoriza tanto a sua característica métrica quanto a fluída, de modo que cada uma contribuísse e valorizasse a outra, uma questão soava: qual a verdadeira necessidade de considerar todos os elementos descritos acima (tempo, duração, unidade ficológica e artística, intensidade, dinâmica, acento) no trabalho do ator? Na música, todos eles fazem muito sentido, mas no teatro, não iria enrijecer a ação do ator? Afinal, já compomos ritmos naturalmente, no nosso cotidiano. Expressivamente, seriam realmente necessários?

Imagem 1: ator Danilo do Carmo em treinamento / Exercício: autoescuta - Foto: Paulo Ragonha
[endif]--Na pesquisa prática optou-se por utilizar todos estes elementos, e para cada um deles foram desenvolvidos exercícios práticos. Afinal, observou-se que o ator e mesmo nós, em nossas tarefas cotidianas, manipulamos todos estes elementos, embora não de modo direcionado e conscientes deles.
[endif]--Caminhar, por exemplo. Quando o ator caminha em direção a um objeto em cena, ele realiza este objetivo dentro de um determinado tempo: em 10, 5, 3, 1 minuto ou meio segundo. Independente da duração da caminhada, para realizá-la na duração que a ação exige, o ator estipulará um andamento: para 12 minutos, passadas lentas. Para 1 minuto, passadas rápidas. Com isso, a respiração e os batimentos cardíacos ou são estimulados (no caso de 1 minuto) ou controlados (12 minutos). Para distribuir estas passadas lentas ou rápidas, o ator estabelece, automaticamente, uma pulsação para ajudá-lo a manter o passo lento ou rápido. Na maioria das vezes esta pulsação está amparada na respiração, uma vez que inspirar e expirar mais lentamente, ajuda controlar o passo mais lento. Portanto, temos aqui duração, pulsação, andamento e tempo, ou seja, praticamente todos os elementos métricos do ritmo.
Além disso, esta mesma caminhada vai compreender determinada tensão, energia, força e ainda, acentos distribuídos ao longo de sua execução, independentes da intenção, do objetivo, do modo de caminhar. “Caminhar com medo”, por exemplo, exige do ator, além de elaborar seu caminhar lento ou rápido - e consequentemente seu andamento e pulsação - pensar na textura, na temperatura, no cheiro, na cor, no gosto, na resistência do corpo que altera o tônus muscular do ator, ou seja, influenciará no grau de energia e esforço que o ator empregará na ação, gerando possibilidades de qualidades, dinâmicas e intensidades a cada passo, surgindo a necessidade de distribuir acentos e pausas ao longo da ação. Fatores que contribuirão para a composição de ritmos.
Uma vez compreendido que uma simples ação do ator já compreende todos estes elementos, o foco da experiência prática foi pensar ações pedagógicas e exercícios teatrais que contribuíssem na percepção destes elementos. A partir desta estrutura do conceito de ritmo que a pesquisa decidiu abordar, percebeu-se que exercícios rítmicos e teorias sobre o ritmo, sozinhas, não tornariam o ator suficientemente hábil para entender todas as suas peculiaridades. Para isso, acreditava ser necessário que o ator desenvolvesse a sua capacidade de percepção, atenção, de modo que, quanto mais receptivo, atento, concentrado e sensível estivesse, melhor para ele captar o tempo, a fluidez, o acento, a duração, a intensidade e energia dos fenômenos rítmicos. Deste modo, o conceito de escuta surgiu como uma possibilidade de sensibilizar ao ator, não por que se escuta o ritmo dos eventos, mas porque escutar é um sentido que coloca o corpo todo em alerta, ao mesmo tempo que atento e receptivo. Portanto, o objetivo maior não era o da sensibilização auditiva, mas a corporal.
Para isso, foi criado um grupo de trabalho, onde pudesse ser experimentado ou experienciado corporalmente todos estes elementos, com três atores que se interessaram pela proposta: Jeferson Vargas, Thais Penteado e Danilo do Carmo, cujos encontros eram realizados duas vezes por semana, por três horas cada um, num total de onze meses de pesquisa.
A ESCUTA DO SUSSURRO
Pensar uma “Escuta Corporal” para tornar o ator sensível aos elementos rítmicos vem da própria palavra escuta. Escutar já exige uma totalidade do ser na sua execução. Do latim a(u)scultare, significa “tornar-se ou estar atento para ouvir” (CUNHA, 1982: 318). O estudioso e músico francês, Pierre Schaeffer (1910-1995) trabalha com o conceito de que escutar “é aplicar o ouvido, interessar-se por. Eu me dirijo ativamente a alguém ou alguma coisa que me é descrita ou assimilada por um som” (SCHAEFFER, 1993: 90). Portanto, a descrição da própria palavra considera o ser integrado, completo no ato de escutar. Ação que não é encontrada no ato de ouvir. Originada do latim audire, ouvir significa “perceber, entender sons através do aparelho auditivo, escutar” (CUNHA, 1982: 568). Para Schaeffer (1993: 90) “é perceber pelo ouvido. Por oposição a escutar, que corresponde à atitude mais ativa, o que ouço é aquilo que me é dado na percepção”. Portanto, como coloca Barthes (1990: 217), ouvir torna-se um ato estritamente fisiológico, já que, por ser uma cavidade direta e constantemente aberta, o ouvido de qualquer pessoa ou animal que não apresenta nenhum problema auditivo ou neurológico capta todo som que chega aos seus ouvidos, sem nenhuma intenção, preparação, distinção ou disposição para recebê-lo. Mesmo como ações diferentes, escutar não exclui ouvir e vice-versa. Estas duas funções estão interligadas e são dependentes uma da outra.

Imagem 2: Danilo do Carmo e Thais Penteado / Exercício: Escuta externa - Foto: Jeferson Vargas
Pensando neste desdobramento da palavra escuta em atentar, perceber, concentrar, receber, que se idealizou a “Escuta do Sussurro” como recurso, como ação pedagógica para contribuir na percepção e composição do ritmo no trabalho do ator, a partir da exploração e ampliação de sua atenção, percepção, concentração e recepção. Ação que já foi explorada e discutida na área musical, no século XX, quando a própria música passava por diversas mudanças oriundas de novos procedimentos composicionais que introduziam sons, ruídos e silêncios, exigindo do público uma nova escuta e percepção para a sua apreciação (SANTOS, 2004: 29). Desde o movimento futurista italiano[5] com o músico Balilla Pratella (1880-1955), se estendendo com os músicos Edgard Varèse (1883-1965) e com as propostas dos compositores Pierre Schaeffer (1910-1995) de “Escuta Reduzida”, de Murray Schafer (1933) “Ouvido Pensante” e de John Cage (1912-1992) com a “Poiética da Escuta” que a escuta tem sido discutida como uma ação fundamental.
[endif]--
Resumidamente, a “escuta reduzida” é uma escuta do “objeto sonoro”, ou seja, do som em sua inteireza, em sua potência e qualidade sonora, do som sem vínculo com a sua fonte, sem atribuir-lhe significados, atentando-se às suas qualidades sonoras, ao som tal como ele se encontrar em seu estado bruto (SCHAEFFER, 1993: 238). Schafer propõe o “Ouvido pensante” para discutir o que chamou de “Ecologia Acústica”, que estuda os efeitos sonoros do ambiente. A Poiética da Escuta é uma terminologia que Shono (1987-1988: 451) propõe diante das propostas artísticas de Cage, entre elas, de que não é mais o compositor que compõe a obra, mas o próprio ouvinte ao escutar o presente, o silêncio, o acaso e não apenas os sons escritos de uma peça. Assim, os ouvintes são livres para se dedicar exclusivamente aos sons, sem a intenção nenhuma de reter os eventos, guardá-los, gravá-los, ou seja, se dedicar a “ouvir-através”, em consonância com “ver-através” do pintor e escultor francês Duchamp (1887-1968) (SANTOS, 2004: 80).
O trabalho de John Cage influenciou diretamente o de Anne Bogart (1951), diretora da SITI Company dos Estados Unidos, que também pensa o que chama de “Escuta Extraordinária”. Sendo um dos preceitos importantes de seu pensamento como diretora, propõe a “escuta extraordinária” como uma postura, um estado que o ator deve desenvolver, em que todos os sentidos são valorizados no mesmo grau de importância e usados na cena ou na preparação de qualquer trabalho. É escutar com todo o corpo, todos os sentidos, relacionando-se ativamente com o inconstante mundo ao redor, “direcionar para fora a sensibilidade ágil e rapidamente, estar disponível e aberto ao outro, sensível a tudo que acontece”[6] (BOGART; LANDAU, 2005: 33). É, neste estado, nesta postura de “escuta extraordinária” na qual não há hierarquia entre os sentidos corporais, promovendo, deste modo, uma sensibilização do corpo todo, mantendo-o atento, alerta e principalmente receptivo que, Anne Bogart introduz o ator aos viewpoints e à composição. Para ela, este é o primeiro passo para o ator iniciar seu trabalho, porque ela resume a função do ator em responder, escutar, perceber, compor com o grupo, com o espaço, com o tempo.
Entre as propostas de escuta aqui expostas, foram a de John Cage e a da Anne Bogart que inspiraram pensar a “Escuta do Sussurro” ou a “Escuta Corporal Dilatada”. Como o objetivo com desenvolvimento desta escuta era expandir a percepção, a recepção, a atenção e a concentração do ator, de modo que fosse capaz de perceber e compor ritmos, preservando a sua paradoxalidade, primeiramente, acreditava-se que fosse necessário desenvolver uma percepção que privilegiasse a sua sensibilidade corporal, de modo uníssono, coeso, sem evidenciar nenhum dos seus sentidos. Uma vez sensibilizado, corporalmente, com todos os sentidos dilatados igualmente, estimular para que ele se conectasse, atentasse e se concentrasse no espaço, no tempo e nos demais atores, propiciando, deste modo, uma consciência do que, onde e quando realizava sua ação, assim como dos elementos que estão à sua volta. Com os sentidos estimulados, de modo coeso, não acentuando apenas os eventos sonoros, visuais ou tatuais, por exemplo. Deste modo ele estaria receptivo para todos os eventos teatrais (luz, cenário, público, etc.) de modo igual e não hierárquico. Assunto fundamental no teatro que envolve uma gama de elementos, cujo centro organizador e mediador de todos eles é, na maioria das vezes, o ator.
Esta disponibilidade perceptiva-corporal nasce, primeiramente, de um estado de atenção ou de alerta. Afinal, para se perceber os mínimos detalhes do ritmo, é necessário estar totalmente apreensivo, sensibilizado e receptivo, a fim de acolher todas estas informações. Portanto, o ator deve estar em alerta o tempo todo. Entretanto, não é um “estar alerta” que o faz dirigir a sua atenção total a um único evento, fixando-se nele e anulando os demais. Esta atitude enfraquece a escuta, reduzindo-a. Por isso, Borgart propõe a visão periférica e o soft focus, por exemplo, como “atitudes” ou “procedimentos” que contribuem para que o ator não se prenda num só detalhe, desenvolvendo um estado de alerta que é, conjuntamente, receptivo. Afinal, o objetivo não é apenas perceber, mas compor a partir desta percepção. Portanto, este estado de alerta que se busca poderia ser denominado de “receptivo-dialógico”: perceber os vários eventos, sem se prender em um único, disponibilizando-se a dialogar com a polifonia de “vozes” ao seu redor. Estar atento para assimilar, perceber, deglutir, ruminar e devolver, em forma de diálogo, numa composição de formas, sons e movimentos rítmicos. Por conseguinte, não basta desenvolver a percepção, a concentração e a atenção do ator. O que se espera é um “estado corporal receptivo-dialógico”. Assim, o primeiro estágio seria o desenvolvimento deste estado de alerta. Ficar disponível para receber, perceber, assimilar, deglutir e ruminar, seria o segundo. Dialogar e compor seriam o terceiro momento desta escuta.