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EXPERIÊNCIA CONTEMPORÂNEA NA ARTE: CORPO E CIDADE*


 

RESULTADO DE INVESTIGACIÓN: Proyecto de investigación colectiva: PRONEM – Programa de Apoyo a Grupos Emergentes, Programa de Pós-graduación en Arquitectura e Urbanismo, Universidad Federal de Bahía UFBA, Salvador, Brasil - Programa de Apoio a Grupos Emergentes, no programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo; da UFBA. tiagonogueiraribeiro@gmail.com

 


Uma intervenção é propositiva e radicaliza a relação do corpo com o ambiente; seja ela judicial, clínica, urbanística ou artística, não se configura como uma mostra ou uma opinião. Uma intervenção é um pensamento político em forma de atitude que interfere, diretamente, no corpo do outro. Quais as diferenças entre Arte Pública, Arte Urbana e Intervenção Urbana? O que, etimologicamente, quer dizer a palavra intervenção? Quais as implicações políticas ao institucionalizar a Intervenção Urbana? Mercantilizada, em que ela pode se transformar? Estas são algumas das questões que se desenvolvem nesta reflexão/provocação que tem como propósito problematizar a institucionalização das relações entre corpo, arte e cidade e perceber como isto implica na construção de subjetividades; ou seja, na formação de corporalidades; o que Foucault definiu como “bio-poder”. O presente trabalho consiste em analisar criticamente aquilo que Guattari desenvolveu como “proto-estetica”, momento da criação onde ainda não há organização estética compartilhável, o que alguns chamam de inspiração, outros de produção de imagens; porém, em um contexto específico: o da criação selecionada por dispositivos estatais ou por empresas privadas, como é o caso dos editais e dos grandes festivais de arte. Acredita-se que a cooptação da Intervenção Urbana por estes dois dispositivos de poder causa o anestesiamento da experiência, o declínio político de uma prática que é discensual, provocativa, inquietante e propõe aquilo que sua construção etimológica traduz: intervir; e aquilo que sua compreensão genealógica sugere: desinstitucioalizar a arte e a cultura.


Palavras-chave: Intervenção Urbana; bio-poder; experiência; subjetividade.


O célebre


Em dez de Janeiro de dois mil e seis, o artista japonês Souzousareta Geijutisuka seria recebido para a série artista invasor do Museu de Arte Contemporânea do Ceará com a mostra Geijitsu Kakuu. O artista, por não falar português, era acompanhado por uma assessora que mediava o contato dele com a imprensa, que concedeu-lhe grande apoio já que tratava-se de alguém com um currículo ilustre.


Os interesses da mídia podem ser vários, diferentes entre si, mas fazem parte de um propósito comum: comunicar, ela só faz sentindo comunicando. Comunica de maneira convincente e busca uma comunicação do tipo homogeneizante, quase com a função de legitimar aquilo que se aborda sob determinada perspectiva, o que abre a possibilidade para a transformação do objeto abordado em célebre, que é legitimado enquanto tal de acordo com a recepção de determinados - vários - grupos. O efeito que a mídia causa na sociedade que a consome é a medida da validação, a intensidade de luz que é projetada no objeto que concorre ao título de célebre, cuja imagem é transformada em signo.


Quando o público e a imprensa chegaram à vernissage[1], descobriram que o japonês era uma invenção do artista cearense Yuri Firmeza. No dia seguinte, os principais jornais da cidade criticaram, majoritariamente de maneira indignada, a postura do artista, bem como a do ex-diretor do museu, Marcelo Resende, que consentiu com a mostra. Uma das críticas finaliza-se com a seguinte pergunta: “afinal, quem iria a uma exposição de Souzousareta sabendo que se trata de uma exposição de Yuri Firmeza?”; e inicia-se com a seguinte colocação:


“A recente molecagem do artista plástico Yuri Firmeza, que inventou o pseudônimo de Souzousareta Geijutsuka e divulgou para a imprensa local seu (dele, Souzousareta) brilhante currículo de exposições no exterior como forma de conseguir espaço na mídia, revelou alguns traços do espírito da arte contemporânea em Fortaleza. Com algumas caras exceções, uma arte pobre, recalcada e alienada, feita por moleques que confundem discurso (ou melhor, as facilidades conceituais de um discurso) com pichação” (ARAÚJO, F. Arte e molecagem. Jorna O Povo, Fortaleza, 11 de Janeiro de 2006).


O intuito do artista foi exatamente o de desestabilizar a mídia e provocá-la. O que ficou ressaltado na resposta que ela deu ao ser “enganada” foi o fato de não ter descoberto que se tratava de alguém inexistente, o que deveria ter sido o papel de um critico e/ou um jornalista perspicaz e comprometido com o seu próprio objeto de trabalho, principalmente no contexto do tempo da internet; e de ter dado visibilidade a alguém supostamente famoso, por isso e só por isso. Ocorreu exatamente o que o artista quis provocar, este foi seu enunciado, sua composição.


Ninguém se encaminhou para a abertura da exposição ansioso por, enfim, entrar em contato com a obra de um artista já admirado; como quem vai, pela primeira vez, a uma exposição de Duchamp com o retrato da Fountaine[2] em memória pulsante, pois ao mesmo tempo a conhece e está prestes a conhecê-la. A vernissage ficou cheia e o único motivo que explica isso, haja visto que trata-se de um artista fictício, é o efeito que o poder da mídia tem para transformar, licitamente, ocasiões em espetáculos, em situações espetaculares.


A celebridade caracteriza-se como aquele cuja imagem sígnica ultrapassa aquilo que a constitui enquanto célebre, é um tipo de personificação que tem forte poder simbólico na sociedade capitalista contemporânea. Quando ela faz propaganda de algum produto, o que menos importa é sua qualidade, mas a falsa idéia de que é consumido por ela; estabelece-se, então, um jogo de mercado que coloca pessoa e produto na mesma escala capital.

Na arte pop isto é bastante evidente, principalmente na música, no cinema e na novela; mas o mesmo ocorre com a arte, supõem-se, menos popularizada, a arte contemporânea. Vários são os artistas celebridades, ainda que eles próprios não se façam celebridades. Quando a artista francesa Orlan fez uma palestra no Museu de Arte Moderna de Salvador, foi recebida por um grande público, mais do que o comum para eventos do mesmo tipo no mesmo local. Na ocasião, poucas pessoas conheciam o trabalho da artista, mas havia informações-chave utilizadas pelo capitalismo cultural: body-art, cirurgia e ao vivo. Estas palavras são suficientes para transformar uma artista francesa em uma celebridade da arte contemporânea no contexto do colonialismo cultural.

O que ocorreu até o momento da abertura da exposição do Yuri foi um exemplo dos efeitos que uma celebridade gera. A mostra ganhou uma visibilidade prévia que estava pautada na magnitude de um ser inexistente; o que põem em discussão a real relevância de um artista: o que é mais importante, sua produção ou a visibilidade que sua imagem produz?


“Se o Cristo Redentor fosse destruído e o pedestal do Corcovado tivesse que ser ocupado, que alternativas a arte ofereceria? Poderia se indicar um artista, simplesmente, para que uma de suas obras ocupasse o pedestal? Que critério usar para a escolha desse artista e que obra seria mais significativa? Uma coisa é certa, o nome do artista assumiria uma importância muito maior que a obra exposta. O pedestal estaria ocupado não por um trabalho, mas por um artista que carregaria inclusive todo o restante da sua obra sob o rótulo da peça exposta no morro” (RESENDE: 153, 2010)


Na arte contemporânea, cada vez mais busca-se por um aprimoramento da imagem para a apresentação de si que, muitas vezes, é mais importante do que as obras. Um expoente artista hoje é aquele que tem maior potencial afetivo e ativo ou aquele que tem uma melhor propaganda de si? Na atualidade esta dúvida é quase ingênua, pois é crescente a especialização por parte dos artistas na esfera dos efeitos midiáticos para a legitimação de suas composições, estas já não bastam mais. A seleção que elas sofrem, tanto pelo público como pelas instituições, é cruel porque não é mais a “obra” que está em jogo na esfera das visibilidades, mas os produtos que ela gera, a partir disso, na forma de registro a serem lançados em blogs, no facebook, etc., sob a égide da ficcionalização do seu próprio fazer, uma forma de simulacro de si mesmo, e da auto-transformação em pequena celebridade.


O pichador


Na crítica descrita anteriormente, a pichação foi colocada como exemplo negativo para reiterar uma concepção de arte burguesa que preza pela concepção de obra e de obra limpa, não ruidosa e pacífica. A maneira como a pichação foi exemplificada é sígnica, pois não discorreu-se sobre ela enquanto grafia, mas sobre a perspectiva da molecagem enquanto um signo criminalizado pelo art. 65 da Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605 de 12 de Fevereiro de 1998), com redação dada pela Lei n. 12.408 de 2011.


Art. 65. Pichar ou por outro meio conspurcar edificação ou monumento urbano:(Redação dada pela Lei nº 12.408, de 2011) Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa. (Redação dada pela Lei nº 12.408, de 2011)


§1o Se o ato for realizado em monumento ou coisa tombada em virtude do seu valor artístico, arqueológico ou histórico, a pena é de 6 (seis) meses a 1 (um) ano de detenção e multa. (Renumerado do parágrafo único pela Lei nº 12.408, de 2011)


§2o Não constitui crime a prática de grafite realizada com o objetivo de valorizar o patrimônio público ou privado mediante manifestação artística, desde que consentida pelo proprietário e, quando couber, pelo locatário ou arrendatário do bem privado e, no caso de bem público, com a autorização do órgão competente e a observância das posturas municipais e das normas editadas pelos órgãos governamentais responsáveis pela preservação e conservação do patrimônio histórico e artístico nacional. (Incluído pela Lei nº 12.408, de 2011).


Desta maneira, o pichador é uma imagem simbólica do contra-poder e da resistência que pode grafar na forma de protesto, de demarcação territorial ou de declaração de amor. Mas o que está em questão aqui é menos sua configuração gráfica do que o processo corporal que envolve o ato de pichar.


A pichação é uma prática difícil de ser transformada em célebre, não o grafismo impresso nos muros, isto é facilmente cooptável, mas a ação de pichar; ela é um tipo de comunic(ação) subversiva por natureza, incorporada à cidade no que tange à sua marginalidade, ao seu desvio; no entanto, o picho é próprio da cidade como são as calçadas, os postes e os muros.


O pichador desenvolve habilidades corporais e estratégias perceptivas que são atravessadas por três fatores, entre outros: prudência, precisão e discrição. Ele foge das câmeras e dos holofotes; portanto, nas cidades contemporâneas, cheias de banho de luz e de câmeras de segurança, pichar é cada vez mais desafiador, exige mais intimidade com a cidade e torna ainda mais relevante conhecer suas zonas e seus fluxos. Ele desenvolve uma “corpografia urbana” específica.


“A cidade é lida pelo corpo e o corpo descreve o que podemos passar a chamar de corpografia urbana. A corpografia seria um tipo de cartografia realizada pelo e no corpo, ou seja, a memória urbana inscrita no corpo, o registro de sua experiência da cidade, uma espécie de grafia urbana, da própria cidade vivida, no corpo de quem a experimenta” (JACQUES, 2007, 95).


O pichador é, por natureza, incompatível com a celebridade, pois ele age na surdina, no limbo entre a visibilidade, já que ele picha para exibir um enunciado, e as estratégias corporais de invisibilidade, pois pichar é crime. A pichação é um fenômeno da cidade para a cidade, não precisa de mediação. A partir de então, serão esboçadas idéias a respeito da Intervenção Urbana - que será citada na abreviatura I.U. - enquanto prática estética, cujo esforço é o de aproximar as duas no que diz respeito a suas relações com o poder e com a (in)visibilidade.


A IU enquanto categoria estética tem seus primeiros indícios com o surgimento dos happenigs e das performances como meios de problematizar as instituições, como museus e galerias, na forma de ratificadores da arte. Este movimento se deu predominantemente na esfera das Belas Artes e depois foi pulverizado para outros campos de criação. Sua qualidade de manifesto ou de protesto a coloca enquanto ação em um lugar que oscila entre arte e não arte. Ser ou não arte não é a questão, mas a maneira como o discurso toma forma.

A IU carrega, em seu próprio significado etimológico uma compreensão muito específica que, se deslocada do seu contexto de produção perde o seu significado. Em IU, o espaço urbano é, por lógica de sentido, o lugar de atravessamentos, de instigações, de práticas, de convergências e divergências, de discensos, de afetações e de criações. Não cabe aqui traçar um histórico das IsUs, tampouco tentar descrevê-las, mas cabe situar que, historicamente, tais práticas tendem ao fazer político e se apresentam de maneira performativa,


“por movimentos inquietos, questionadores – aqueles que não se satisfazem com respostas já dadas e trabalham para perturbar o domínio do “o que”, “para que/quem”, “porque” em favor de um “como” que precisa ser sempre construído” (SETENTA: 2008, 83).


Uma IU, cuja natureza é pública, lida diretamente com as relações de alteridade e de imprevisibilidade em um espaço que é ocupado pelas diferenças, pelos acasos e pelos encontros. Ela tem como característica a especificidade da sua ocorrência no que diz respeito à processualidade, onde o tempo da intervenção coincide com o tempo em que ela propõe modificar o olhar sobre a cidade, o que depende de vários fatores, desde a intervenção da polícia a uma chuva.


O que desestabiliza os padrões em uma IU são os efeitos que ela provoca nas pessoas da cidade no momento em que são afetadas, quando têm seu estado corporal modificado por conta de desvios perceptivos e sensoriais. Isso provoca diversas questões quando se discute sobre registrar ou não uma prática que só existe no momento em que interfere. Este debate envolve problematizações que dizem respeito não propriamente à imagem, seja ela fotográfica ou videográfica, mas ao uso que é feito delas a posteriori assim como como à ação de registrar.


A presença da câmera funciona como uma mediação que carrega signos que induzem a percepção daqueles que participam dela. É comum os transeuntes, diante desta situação, confundirem a ação que está sendo realizada com uma locação de cinema assim, eles condicionam sua percepção para um campo diferente daquele que se pretende, talvez até oposto; automaticamente a cidade se transforma em um cenário, assim, ela é admitida, o oposto da lógica da intervenção, que pressupõe o discenso, um tipo de negação propositiva e criativa.


É crescente a criação de ambientes virtuais de visibilidades de artistas ou grupos. Isso ocorre com a criação de blogs e com a pulverização das redes sociais. Mas não deve perder-se de vista que uma IU publicada no youtube, por exemplo, configura-se e implica em algo diferente da experiência ocorrida, ela serve apenas como documentação. Porém, com o mecanismo dos editais, a manipulação do registro de uma suposta IU tem comprometido a própria idéia de IU, pois tem, vez por outra, tomado seu lugar.


A IU não coincide com o espetáculo, este a fragiliza ou extermina-a, ela é do limbo entre a visibilidade e a invisibilidade, cartografa a cidade de maneira sensorial e desenvolve estratégias para isso, tal qual o pichador. Comporta uma medida de discrição que permite-a comunicar sem se espetacularizar. Mas ela coincide, também, com a fetichização da cidade, com a intensa transformação dos espaços urbanos em espetáculos e com o fenômeno da facilidade em auto promover-se; o que a coloca em risco de despolitizacão e de entrada na cadeia da esquizofrenia produtiva.


o cego


Ao acreditar que o edital é o meio mais apropriado para a realização de experiências estéticas, coloca-se em relevância a imagens e o discurso; meios pelos quais a curadoria exclui, inclui, julga, distribui e categoriza. Julga-se pela derivação de algo, o que implica em uma suposição. Desta maneira, este tipo de seleção tem como pressuposto a especulação. Aquele que conseguir especular melhor, será o concorrente portador de mais chances, para “vencer a batalha”.


Sem inocência, têm-se investido numa produção de marketing que, na maioria da vezes, falseia a prática. Um registro, ainda que de caráter documental, não é a realidade, é uma ficção. Houveram seleções, edições e montagens; escolhas de foco e de fundo, ou seja, exclusões de realidade. Mas com inocência, tem-se admitido que é o Estado quem controla, quem determina quanto deve ser captado para a construção das propostas, os lugares e a formas de visibilidade e o tempo de criação.


O poder contemporâneo que o Estado estabelece nas manifestações estéticas pode ser legitimado pelo funcionamento dos editais, Ele não precisa, como na ditadura, perseguir a criação para controlá-la; os próprios artistas buscam os dispositivos do Estado e tendem a acreditar que assim, e só assim, é possível produzir.


“Postulá-lo é, justamente, dar crédito ao que sua máquina quer nos fazer crer. É ver somente a noite escura ou a luz ofuscante dos projetores. É agir como vencidos: é estarmos convencidos de que a máquina cumpre seu trabalho sem resto nem resistência. É não ver mais nada. É, portanto, não ver o espaço – seja ele intersticial, intermitente, nômade, situado no improvável – das aberturas, dos possíveis, dos lampejos, dos apesar de tudo” (DIDI-HUBERMAN: 2001, 42).


Neste formato, o que tem tomado visibilidade não é mais a obra enquanto acontecimento, mas enquanto produto estatal que, abaixo, acima ou ao lado do seu título carrega uma logomarca. Ao fazer parte deste circuito, as IsUs, inadvertidamente, colaboram para a pulverização do poder do estado nos processos de subjetivação das estéticas da cidade, ao ponto de amenizarem os conflitos presentes nela. Desta maneira, este estado de pacificação compromete a experiência, transforma-a numa outra experiência, mediada pelo Estado , submetida e anestesiada por ele; já que seu papel é o de controlar e regular.


Põem-se em questão o tempo que os artistas têm que disponibilizar para escreverem os editais e para formatarem suas idéias a partir do que os editais sugerem, haja visto que os projetos devem seguir algum tipo de padrão, como apresentação da proposta, justificativa, impacto social, etc. Cria-se outro corpo, hábil para escrever aquilo que talvez ele nem cumpra e possivelmente inabil para experimentar. Desloca-se a pratica do discurso, confunde-se performatividade com simulacro.

Diante da esquizofrenia que os editais têm causado, o que implica no ludibriamento dos “artistas” com a suposta idéia de que aqueles são “o” meio de “sobrevivência” destes, causa um efeito danoso no que diz respeito à criação. Esta, tendendo à voltar-se mais para o mercado da arte e para o funcionalismo estatal do que para as crises internas que impulsionam a criação; “o ato de criar é uma crise denotativa de um alto nível de complexidade viva” VIEIRA: 2006, 59).


Desta maneira, corre-se o risco de reforçar o poder simbólico que é exercido na construção da subjetividade capitalista e, ao mesmo tempo, manter-se cego para enxergar outra possibilidade de produção estética que não seja através das instituições. E a maneira de fazê-lo é inscrever-se, compulsivamente, nos editais que, por sua vez, se inscrevem nos corpos daqueles que a eles se submetem.


Com isso não é proposto um “fim aos editais”, mas uma reconfiguração das relações que são estabelecidas naquilo que os tange. Um edital de arte não é danoso em si mesmo; em si mesmo ele não passa de uma superfície bidimensional, ele só é legítimo quando faz parte da engrenagem da máquina estatal, cujo combustível é, digamos, a própria arte.


Se os editais fazem parte da maquina do Estado, devem operar pela manutenção do próprio Estado; sendo assim, seu “combustível” será aquele mais compatível com a saúde daquele que o gerencia: o Estado. Este, por sua vez, controla a cidade, controla os espaços urbanos e o que ocorre neles. Portanto, deve controlar e “acolher” tudo aquilo que o ameaça. Uma das características recorrentes de IsUs realizadas sob a égide dos editais é, inclusive, sua legalidade perante o Estado, o consentimento e a liberação da ação.


É aqui que mais uma vez recorro ao pichador como um dos mais fiéis à poética das cidades no que tange à subversão do controle, pois sua subversão está na esfera, diretamente, da biopolítica. É seu próprio corpo aquilo que desafia a ordem pública, não a pichação, que é a formalização do pensamento subversivo, mas a ação de pichar e as implicações que a envolve. É neste ponto que a IU coincide com ela, na instabilidade presente na relação entre corpo e norma, seja esta estatal ou micropolítica.


Ambas as práticas implicam em formas discensuais de expressão, não entre si, mas em relação com o mudo; sugerem, no próprio ato de fazer, pontos de fuga para aquilo que está pré-estabelecido pelo sistema macro perceptivo e sensitivo imposto pela regulação da cidade que, entre outra estratégias, utiliza-se da vigilância e da burocratização como acionamentos de controle. Desta maneira, poem o próprio corpo em risco frente aos mecanismos de poder que gerenciam as cidades. Sugerem novas percepções da cidade.

Se a ação é a de intervir, o consentimento lhe expropria o sentido. A obtenção de uma permissão jurídica para o uso de determinado espaço é incongruente com a lógica etimológica da palavra intervenção se colocada nestes termos estéticos aqui apresentados, pois seu sentido é o de desviar das concessões. Sob os acordos institucionais, a exemplo dos editais, as experiências estão, necessariamente, restritas aos princípios que lhes são impostos; entre eles o da visibilidade, como aquela que recusa o pichador.


Aqui há uma associação que pode ser nefasta: aquela que monta o célebre e aquele portador do vírus da cegueira. A mídia e o Estado, um casamento super poderoso, já que trata-se de dois poderes, de duas maneiras diferentes de fazer valer o poder. Um é complementar do outro e juntos formam uma hegemonia biopolítica. Um controla, a outra produz os sujeitos.


Referências:


  1. AGAMBEM, G. Profanações. São Paulo: BOITEMPO, 2007.

  2. ARAÚJO, F. Arte e molecagem. Jorna O Povo, Fortaleza, 11 de Janeiro de 2006.

  3. BAUDELAIRE, C. P. Paraísos artificiais: o haxixe, o ópio e o vinho. Porto Alegre: L&PM, 2007.

  4. BRASIL. Lei Nº 9.605, de 12 de Fevereiro de 1998. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9605.htm, acessado em 22 abr. 2012.

  5. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol.5. São Paulo: Ed. 34, 1997.

  6. DIDI-HUBERMAN. Sobrevivência dos vaga-lumes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001.

  7. FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

  8. ____________. História da sexualidade I: a vontade de saber. Lisboa: Relógio D`Água, 1994.

  9. ____________. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1987.

  10. GUATTARI, F. Cartografías del deseo. Buenos Aires: La Marca,1995.

  11. GOLDBERG, R. A arte da performance: do futurismo ao presente. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

  12. JEUDY, H. O corpo como objeto de arte. São Paulo: Estação Liberdade, 2002.

  13. JACQUES, P. B. Corpografias urbanas: o corpo enquanto resistência. Cadernos PPG-AU/FAUFBA. Salvador, resistência em espaços opacos, p. 93-104, 2007.

  14. LEPECKI, A. O corpo colonizado. GESTO – revista do centro coreográfico do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Prefeitura Municipal, n.2, 2003.

  15. MELIN, R. Performance nas artes visuais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.

  16. RANCIÈRE, J. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Ed. 34, 2005.

  17. RESENDE, J. Ausência da escultura. In: COHN, S. Ensaios fundamentais: artes plásticas. Rio de Jneiro: Beco do Azougue, 2010.

  18. SETENTA, J. S. O fazer-dizer do corpo: dança e performatividade. Salvador: EDUFBA, 2008.


[1] Um termo francês normalmente utilizado para designar a pré-estréia de algo, uma mostra privada que precede uma exposição, geralmente, de arte.


[2] Fonte em francês. Título da obra mais relevante de Duchamp para a história da arte, onde ele expõe um mictório em uma galeria e levanta a questão do que seria uma obra de arte.


*Tomado del Archivo Documental “Cuerpos, sociedades e instituciones a partir de la última década del Siglo XX en Colombia”. Mallarino, C. (2011 – 2016). Tesis doctoral. DIE / UPN-Univalle.





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