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Os usos da erva nas canções populares: algumas considerações para o estudo da cultura cannábica


 

RESULTADO DE INVESTIGACIÓN: Tesis doctoral: “Los auto-cultivos domésticos y los usos de la maconha en Rio de Janeiro y Buenos Aires: un estudio comparativo de la cultura cannábica”. - Programa de Pós-Graduación en Antropología, Universidad Federal Fluminense UFF, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil

 

A emoção musical provém precisamente do fato de que a cada instante o compositor retira ou acrescenta mais ou menos do que prevê o ouvinte, na crença de um projeto que é capaz de adivinhar, mas que realmente é incapaz de desvendar devido à sua sujeição a uma dupla periodicidade: a de sua caixa torácica, que está ligada a sua natureza individual, e a da escala, ligada à sua educação. Se o compositor retira mais, experimentamos uma deliciosa sensação de queda; sentimo-nos arrancados de um ponto estável no solfejo e lançados no vazio, mas somente porque o ponto de apoio que nos é oferecido não se encontra no local previsto. Quando o compositor tira menos, ocorre o contrário: obriga-nos a uma ginástica mais hábil do que a nossa. Ora somos movidos, ora obrigados a nos mover, e sempre além daquilo que, sós, nos sentiríamos capazes de realizar. O prazer estético é feito dessa infinidade de enlevos e tréguas, esperas inúteis e esperas recompensadas além do esperado, resultado de desafios trazidos pela obra; e da sensação contraditória que provoca, de que s provas às quais nos submete são insuperáveis, quando ela se prepara para nos fornecer meios maravilhosamente imprevistos que permitirão vencê-las”.


(Claude Levi-Strauss – “O Cru e o Cozido”)



1. Considerações Iniciais.*


O objetivo deste trabalho é a apresentar alguns aspectos da pesquisa de doutorado que venho desenvolvendo, cujo título provisório é “Os auto-cultivos domésticos e os usos da maconha no Rio de Janeiro e Buenos Aires: um estudo comparativo da cultura cannábica”. Trata-se de abordagem etnográfica, calcada nos contrastes entre a emergência de tal cultura nos respectivos contextos: carioca e portenho. Os resultados até o momento alcançados permitem entender por “cultura cannábica” um complexo de traços materiais e não materiais que vão desde o plantio da maconha para uso próprio até a reivindicação política pela retirada de tal prática da clandestinidade, passando por variadas redes de sociabilidade e valores estéticos. E é com estes formatos que a cultura cannábica é explicitada e se realiza no universo das canções populares.


Por canções populares, entendo aqui aquelas que alcançam relativo sucesso radiofônico e em virtude das quais seus autores adquirem alguma notoriedade no cenário do assim concebido show business. Neste encontro ente a economia e a arte, podem as culturas vir a se expressar, realizando-se enquanto tal, alcançando o público e as subjetividades, não raro, ensejando novas subjetividades. Entre as modalidades de manifestações culturais que se colocam na mídia (falada, escrita, televisada) ocupam um lugar significativo as canções (ou mesmo grupos musicais) que deliberadamente expressam os usos da erva cannabis, difundindo-se pelas ondas do rádio e povoando o repertório musical de festas públicas e particulares. Chamarei aqui este conjunto de cultura imaterial de músicas de maconheiros.


Difundem-se nestes contextos (reais e virtuais) os gestos, as deixas e os códigos através dos quais os que compartilham da cultura cannábica se comunicam entre si sem que os outros percebam do que se trata, caso assim o queiram (ou, caso contrário, explicitando tal identidade). Há significados contidos em sinais e corporalidades que permitem ao visitante chinês que domina a linguagem cannábica entender uma senha para o mercado ou consumo de maconha, seja em Lisboa, Lima, Rio de Janeiro ou Buenos Aires, mesmo que este não entenda quase nada do português ou do castellano. Isso tudo (linguagens corporais e significados musicais) dá forma e conteúdo a tal cultura.


Quando cheguei na cidade de Buenos Aires em setembro de 2010 para a primeira missão de estudos deste programa de pesquisa, perguntei a uma antropóloga da Universidad de Buenos Aires a respeito de espaços de sociabilidade cannábicos desta cidade[1]. Ela disse que, além das plazas portenhas, alguns concertos musicais seriam especialmente interessantes no âmbito desta etnografia. Após uma ligeira consulta na internet, indicou um concerto que haveria naquele fim de semana na cidade: os uruguaios da banda La Vela Puerca. Musicalmente bastante ecléticos (indo do rock pesado ao ska com notável desenvoltura), em diversas letras com forte acento de contestação social, usam e abusam da alusão à maconha. Uma banda em sintonia com a cultura cannábica (inclusive o termo “vela puerca” pode ser interpretado como um cigarro de maconha de grandes proporções).


Igualmente sintonizadas com tal cultura são muitos outros grupos musicais, em muitos lugares do mundo. No Rio de Janeiro, desde os anos 1990 que se conhece o Planet Hemp, atualmente extinta (que também traz no nome a alusão à erva). Com sua fusão de ritmos pop, rap e samba, assumiram um papel de militância pró-cannabis em uma época em que no Rio de Janeiro havia um certo pioneirismo em abordagens artísticas do tipo, ao menos de maneira tão explicita. Contudo, alusões aos usos e mercados, controles e contornos, conflitos e moralidades, (ainda que muito mais implícitos ou camuflados) relativos à cannabis, têm uma recorrência mais antiga nas letras das canções populares.


Aqui, tomo como base as canções maconheiras que escuto desde criança, que ora são mais, ora menos explícitas no que pretendem comunicar, no contexto dos meios de comunicação e espaços de sociabilidade no Rio de Janeiro. Portanto, deixo para uma próxima ocasião a abordagem contrastiva (presente no plano da tese) que poderia surgir ao considerarmos também a realidade correlata no contexto da cidade de Buenos Aires.


Na Abertura de “O Cru e o Cozido”, Claude Levi-Straus aborda o mundo de homologias estruturais entre a música e os mitos – ambos, segundo ele, capazes de suprimir o tempo das percepções do ouvinte. Ao abordar o universo das canções com algum sucesso radiofônico e que ao mesmo tempo fazem referência aos usos da maconha, a música popular e os mitos da marginalidade se enfeixam em representações sugestivas para o antropólogo preocupado em entender a cultura cannábica. Além disso, busco contribuir para a construção do conhecimento antropológico acerca das reconfigurações contemporâneas da cultura – produtoras e reprodutoras de diferentes corporalidades, subjetificações e identidades.


Diante de uma apresentação musical, podemos ter diferentes reações ao que nos é apresentado. Entre as mais variadas possibilidades, acreditamos que a mais interessante das questões que buscamos responder é: “que música é essa?”. Nesse instante, uma simples pergunta como essa seria o despertar de uma experiência complexa e ao mesmo tempo particular, já que a forma como a música nos afeta é sempre articulada a dados (des)conhecidos da cultura. Se pudéssemos projetar as várias respostas, notaríamos que a prática musical envolve um esforço reflexivo capaz de provocar um diálogo com “aquilo”que se passa no palco ou nas caixas de som. (SOUSA: 2009, 69)


No que se refere aos temas estruturantes, deste trabalho, que aparecem nos títulos das seções, meu percurso é aparentemente arbitrário e subjetivo. Isso porque creio que, por onde quer que se entre neste mundo de representações e categorias de pensamento contidas nas letras dos compositores (ao mesmo tempo que cantadas e corporificadas pelos intérpretes), as conexões e homologias encontradas pelo observador atento permitirão entender a cultura na qual estão inseridas. Isso de uma maneira particular, que não exclui, obviamente, outras maneiras e outras trajetórias para o mesmo objetivo. Também não pretendo fazer um caminho cronológico. Neste sentido é que a arbitrariedade da escolha do percurso é apenas aparente, uma vez que a direção do meu olhar desde a entrada neste universo está (como não poderia deixar de ser) condicionado pelos objetivos da tese e atualizado pela pratica etnográfica através da qual se constitui a mesma.


2. Usos e mercados.


Em 1964, Roberto Carlos, o jovem que depois viria ser consagrado o Rei da música popular brasileira, lançava seu terceiro disco. “É proibido fumar!” é o nome do álbum e da faixa de abertura. Assim ia se constituindo a chamada Jovem Guarda, que musicalmente falando investiam na incorporação do rock’n’roll, do rockabilly, com letras, atitudes e corporalidades que pareciam contestar à sua maneira uma certa concepção de bom comportamento. Naquela época, o uso da maconha na cidade do Rio de Janeiro, que até então era tido como um hábito dos grupos mais pobres e marginalizados da sociedade, começa a ganhar o gosto e a fazer parte do estilo de vida dos jovens da assim compreendida “classe média” (VELHO: 1998; MACRAE/SIMÕES: 2000; MISSE: 2006). Na música de Roberto Carlos[2], o titulo é o refrão, repetido mais de uma dezena de vezes. E fala-se de cigarros de tabaco, legalizados, entre beijos apaixonados, mas o tom de contestação se faz presente, como no trecho abaixo:


Sigo incendiando bem contente e feliz

Nunca respeitando o aviso que diz

Que é proibido fumar


No início dos anos 2000, portanto, quatro décadas após o Rei Roberto Carlos haver lançado “É proibido fumar”, o Skank, banda mineira de muito sucesso desde os anos 1990, lança sua versão dessa música, gravada durante uma apresentação do grupo na cidade de Ouro Preto (MG). A platéia contribuiu com o couro, complementando o refrão com o grito: “Maconha!” – ficando portanto: “É proibido fumar: maconha!”. Estava feita a ressignificação. A partir de então a música entrou definitivamente no repertório do Skank, e sempre que é executada nos shows, acaba funcionando como uma senha para que as pessoas da platéia acendam seus baseados e gritem: “Maconha!”. O nome Skank é uma referência direta ao Skunk, variedade de maconha cultivada e domesticada com forte efeito psicoativo.


Entre um e outro momento, os usos da erva nas canções populares variaram no nível de explicitação deste tema. Em 1974, o roqueiro baiano Raul Seixas compôs “Como vovó já dizia”[3] e a colocou na trilha sonora de uma telenovela exibida na TV Globo entre os anos de 1974 e 1975, chamada “O Rebú”. Seu refrão faz alusão direta a usos e costumes em sua relação com a cultura cannábica.


Quem não tem colírio, usa óculos escuro Minha vó já me dizia pra eu sair sem me molhar Quem não tem colírio usa óculos escuro Mas a chuva é minha amiga e eu não vou me resfriar Quem não tem colírio usa óculos escuro A serpente está na terra, o programa está no ar Quem não tem colírio, usa óculos escuro A formiga só trabalha porque não sabe cantar...


Em grande medida, faz sentido interpretar a sociedade brasileira como avessa à explicitação dos conflitos (KANT DE LIMA: 2008). E o uso de maconha, nesta época, estava começando a se consolidar enquanto um dos traços da contracultura de contestação do status quo, em plena época de Ditadura Militar (1964 – 1985) – se configurando, portanto, como uma atividade potencialmente conflitiva (além de posta na clandestinidade). Temos, pois, ilustrado na letra de Raul Seixas, um dos princípios estruturantes do consumo de maconha no Rio de Janeiro: o dichavo.


Dichavar é ter o cuidado e a disciplina necessários – principalmente em algumas ocasiões e situações sociais – para que o consumo da erva não fique evidente. Dichavar é disfarçar, e o contrário da atitude dichavada é a explanação, que, por sua vez, consiste na falta de cuidado e/ou explicitação deliberada de tal hábito, potencialmente conflituoso em alguns círculos familiares, escolares e ambientes de trabalho[4]. Colírios e óculos escuros disfarçam os olhos vermelhos, um dos efeitos mais visíveis do uso da maconha – são, dessa maneira, ferramentas a serviço do dichavo. Em toda a letra de “Como vovó já dizia”, não encontramos, por outro lado, nenhuma referência direta à maconha ou ao seu uso. Ainda assim, é uma espécie de hino dos maconheiros até os dias de hoje. Isso porque conseguiu, naquela época, dicahavar-se o suficiente para não ter a execução proibida pela Censura, que naqueles anos foi impiedosa com artistas do quilate de Chico Buarque, Caetano Velloso, e também o próprio Raul Seixas, entre outros.


Cerca de vinte anos depois, os cariocas da banda O Rappa lançam “A Feira” – canção em que abordam não apenas o uso da maconha, mas também os seus mercados, muito mais criminalizados quando postos em comparação com os usos (VERÍSSIMO: 2010; GRILLO/POLICARPO/VERÍSSIMO: 2011). Reproduzo abaixo a letra completa:


A FEIRA


É dia de feira Quarta-feira Sexta-feira Não importa a feira É dia de feira Quem quiser pode chegar...

Vem maluco, vem madame Vem Maurício, vem atriz Prá comprar comigo...

Vem maluco, vem madame Vem Maurício, vem atriz Prá levar comigo...

Tô vendendo ervas Que curam e acalmam Tô vendendo ervas Que aliviam e temperam...

Mas eu não sou autorizado Quando o Rappa chega Eu quase sempre escapo Quem me fornece É que ganha mais A clientela é vasta Eu sei! Porque os remédios normais Nem sempre Amenizam a pressão Amenizam a pressão Amenizam a pressão...


Segundo a Lei 11.343, de 2006, atualmente a chamada Lei de Drogas em vigor no Brasil, a pessoa que se envolve no comércio de drogas postas na ilicitude, pode, se considerado culpado do crime de “Tráfico” (Artigo 33 da Lei de Drogas), receber uma pena de 5 a 15 anos de prisão. Uma das novidades que este novo ordenamento legal relativo a substâncias postas na ilicitude trouxe em relação ao anterior foi a abolição de pena de prisão para aqueles enquadrados como “usuários”, acompanhado do recrudescimento da pena para o assim chamado “traficante”. Contudo, o que a música do Rappa mostra é um mercado bem articulado, explanado, como é típico das chamadas bocas de fumo cariocas – ou seja, lugares fixados teritorialmente onde a compra-e-venda de drogas ocorre com bastante regularidade e há um tempo considerável e a qualquer hora do dia.


Outra questão posta em “A Feira” e que aparece também com bastante freqüência no debate acadêmico a respeito da problemática das drogas é a tênue delimitação entre o que é “droga” (vício) e o que é “remédio” (tratamento). Em “Fármacos e outros objetos sócio-técnicos: notas para uma genealogia das drogas”, Eduardo Viana Vargas chama a atenção para o fato de que a diferença entre um e outro está longe de repousar em propriedades intrínsecas das substâncias (dispositivos). O próprio termo droga pode ser assim compreendido como “uma categoria complexa e polissêmica que recobre e reúne, por vezes de modo marcadamente ambíguo, como também isola e separa, tantas vezes de modo instável, matérias moleculares as mais variadas” (VARGAS: 2008, 41).


Assim, como na lição do Dr Paracelso, a diferença entre o remédio e o veneno pode estar contida na dose, mais que na substância em si. No mais, são regulações, controles e contornos, conforme veremos na seção a seguir.


3. Controles e contornos.


Muito provavelmente a mais famosa música de maconheiros no contexto do Rio de Janeiro é um samba, cujo título é “Malandragem dá um tempo”, gravada originalmente por Bezerra da Silva em 1986[5]. Posteriormente, outros artistas, de variadas vertentes musicais, também a gravaram, a exemplo do grupo Barão Vermelho e do cantor Marcelo D2 (ex-Planet Hemp), fazendo com que fossem incorporados à letra e á música outros ritmos e estilos. A versão do Barão Vermelho, por exemplo, tornou-se muito famosa uma década depois da apresentação por Bezerra da Silva, ganhando uma roupagem roqueira e um naipe de metais. Dessa maneira, a perspectiva geracional e de público da música tornou-se consideravelmente maior.


O tema central deste elogiao á arte da malandragem, tão ao estilo do que em grande medida se concebe ser parte representativa do espírito do carioca, são justamente os controles e os contornos deste hábito de sociabilidade marginalizada que são as rodas de fumo de maconha. Abaixo a primeira metade da música:


Vou apertar, mas não vou acender agora Vou apertar, mas não vou acender agora Se segura malandro, prá fazer a cabeça tem hora Se segura malandro, prá fazer a cabeça tem hora...

Eh, você não está vendo Que a boca tá assim de corujão Tem dedo de seta adoidado Todos eles afim De entregar os irmãos Malandragem dá um tempo Deixa essa pá de sujeira ir embora É por isso que eu vou apertar Mas não vou acender agora...ihhhhh!


De acordo com o vocabulário cannábico falado no Rio de Janeiro, “apertar” significa confeccionar o cigarro de maconha: apertar um baseado. E “fazer a cabeça” designa o próprio ato de fumar maconha, permitindo que os efeitos psicoativos chegem à mente. Dessa forma, o início da música (que também é um refrão exaustivamente repetido) insiste na explicitação de uma certa sabedoria necessária a adeptos da cultura cannábica diante da clandestinidade da mesma: é preciso se certificar que não se será surpreendido pela polícia, principalmente a Polícia Militar – mecanismo de controle tradicionalmente utilizado na repressão ao uso da maconha.


Dedo de seta” e “corujão, são formas de se fazer alusão a outro notório personagem da cultura cannábica carioca, também muito retratado no repertório de Bezerra da Silva: a pessoa que denuncia esta prática ilegal, o alcagüete (ou “caguete”, na linguagem coloquial carioca). Estes, juntamente com os policiais, são os antagonistas dos adeptos da cultura cannábica. Contra estes, a canção ensina, é preciso aplicar a malandragem da etiqueta: vou apertar... mas não se pode acender neste momento. Bezerra da Silva é a própria imagem do malandro. Nascido no nordeste e radicado nas favelas cariocas, sua biografia pode ser tida como um produto desta experiência sócio-cultural sui generis que tão bem soube retratar (VIANNA: 1999).


A opção pelo samba não aparece como uma guinada artística inesperada, mas como uma outra opção que se vislumbra ao longo do tempo em que Bezerra da Silva viveu como habitante dos morros cariocas, onde não só tomou conhecimento das questões e dilemas do cotidiano deste local, como também conheceu vários compositores totalmente desconhecidos. Nesse quadro vivenciado, Bezerra da Silva grava um significativo número de canções que reportam a este novo local de habitação e às situações ali vividas cotidianamente. Entretanto, ao invés de aparecer como autor das canções, ele prefere buscar entre os vários compositores das favelas do Rio de Janeiro o conjunto de letras das canções gravadas em seus álbuns. (SOUSA: 77)


Outra música do repertório do sambista, não tão famosa, mas igualmente explícita, educativa e contendo os mesmos elementos da anterior é aquela intitulada “A fumaça já subiu pra cuca”[6].


Não tem flagrante porque a fumaça já subiu pra cuca

Não tem flagrante porque a fumaça já subiu pra cuca

Deixando os tiras na maior sinuca

E a malandragem sem nada entender

Os federais queriam o bagulho e sentou a mamona na rapaziada

Só porque o safado de antena ligada ligou 190 para aparecer

Já era amizade

Quem apertou, queimou já está feito

Se não tiver a prova do flagrante nos altos do inquérito fica sem efeito[7]


Na situação descrita, a Polícia chegou tarde demais. Depois de fumado, consumido, consumado o baseado, faltava-lhes a prova material do delito, sem o qual o “inquérito fica sem efeito”, ou seja, nulo, não vale (não há, de fato, o flagrante). Outra característica indispensável ao bom malandro é o conhecimento razoável da Lei. Novamente aparece a presença ameaçadora do delator: “o safado de antena ligada” (ou seja, atento demais ao que não é da sua conta), que discou 190 (o telefone da Polícia). Em outra estrofe da mesma música, faz-se alusão ao necessário controle das impressões (BERREMAN: 1980), sem o qual o malandro padece, por obra do “caguete” (delator), nas mãos dos “homem” (policiais).


Tem nego que dança até de careta

Porque fica marcando bobeira

Quando a malandragem é perfeita ela queima o bagulho e sacode poeira

Se quiser me levar eu vou, nesse flagrante forjado eu vou

Mas na frente do homem da capa preta é que a gente vai saber quem foi que errou

Se quiser me levar eu vou, nesse flagrante forjado eu vou

Mas na frente do homem que bate o martelo é que a gente vai saber quem foi que errou.


Flagrante forjado – ou simplesmente “um forjado”, é o nome pelo qual, no Rio de Janeiro, se designa a prática de acordo com a qual, não raro, policiais, na falta de provas, forjam uma “prova” e alegam que estava sob o porte dos suspeitos, sem que assim o estivessem de fato. No caso, consiste em a equipe de policiais ter em seu poder a substância proibida (no caso, a maconha), para lançar mão do ardil quando necessário (VERÍSSIMO: 2008). Na música, o juiz (“homem da capa preta”, “homem que bate o martelo) aparece representado como árbitro, que irá decidir com justiça quem tem razão (se o malandro ou os policiais que o prenderam).


4. Considerações finais.


Na canção intitulada “O Cachimbo da Paz”, o raper Gabriel, o Pensador narra uma interessante estória, na qual o Presidente da República vai ao Pantanal e lá conhece um velho índio, que lhe apresenta a erva, na forma do cachimbo da paz Na delegacia só tinha viciado e delinquente[8]. O mandatário da nação gostou tanto do que experimentou que resolveu nomear o índio para Minstro da Justiça. Chegando na cidade com 80 kilos de maconha, e assim, “todo mundo experienta o cachimbo da floresta”, que cai no gosto geral. Contudo, logo o princípio de realidade se instala. Após o fim desta reserva, o índio vai à selva buscar mais maconha, e na volta é preso pela polícia federal. A partir deste momento, o índio cai em desgraça e começa a ver o retrado de uma sociedde cheia de problemas e contradições, e em grande medida hipócrita, como podemos ver na seguinte estrofe:


Na delegacia só tinha viciado e delinquente Cada um com um vício e um caso diferente Um cachaceiro esfaqueou o dono do bar Porque ele não vendia pinga fiado E um senhor bebeu uísque demais Acordou com um travestí e assassinou o coitado Um viciado no jogo apostou a mulher Perdeu a aposta e ela foi sequestrada Era tanta ocorrência, tanta violência Que o índio não tava entendendo nada Ele viu que o delegado fumava um charuto fedorento E acendeu um "da paz" pra relaxar Mas quando foi dar um tapinha Levou um tapão violento e um chute naquele lugar Foi mandado pro presídio e, no caminho Assistiu um acidente provocado por excesso de cerveja Uma jovem que bebeu demais Atropelou um padre e os noivos na porta da igreja E pro índio nada mais faz sentido Com tantas drogas por que só o seu cachimbo é proibido?


No final da música o sacrifício do índio ex-ministro da justiça ganha tons cinematográficos. Ali, Gabriel aproveita para, em atitude de denúncia, fazer crítica social para atingir o público que ouve rádio.


Na penitenciária o "índio fora da lei" Conheceu os criminosos de verdade Entrando, saindo e voltando Cada vez mais perigosos pra sociedade "Aí, cumpádi, tá rolando um sorteio na prisão Pra reduzir a super lotação" Todo mês alguns presos tem que ser executados E o índio, dessa vez, foi um dos sorteados E tentou acalmar os outros presos: "Peraí, vamo fumar um cachimbinho da paz" Eles começaram a rir e espancaram o velho índio Até não poder mais e antes de morrer ele pensou: "Essa tribo é atrasada demais Eles querem acabar com a violência Mas a paz é contra a lei e a lei é contra a paz" E o cachimbo do índio continua proibido Mas se você quer comprar é mais fácil que pão Hoje em dia ele é vendido pelos mesmos bandidos Que mataram o velho índio na prisão

Maresia, sente a maresia Maresia, uh

Apaga a fumaça do revólver, da pistola Manda a fumaça do cachimbo pra cachola Acende, puxa, prende, passa Índio quer cachimbo, índio quer fazer fumaça


Nesta e nas outras canções que neste trabalho figuraram, aspectos relacionados à cultura cannábica são postos e discutidos, com criatividade e ironia, permitindo o debate público de temas antes considerados tabus – e assim vão deixando de sê-lo. Para o etnógrafo interessado em descrever e interpretar tal cultura, se configuram em importante material de estudo, água para o moinho da pesquisa científica, uma vez que nelas, mitos e representações são ora explicitados, ora contestados. A lista de canções e idéias poderia se estender por páginas e páginas adiante. Contudo, penso que melhor do que isso é a discussão do que se apresenta no presente texto, no âmbito deste simpósio, o que permitirá não apenas a qualificação desta contribuição específica, mas também do projeto de tese como um todo.



Referências Bibliográficas


  1. BERREMAN, Gerald. “Etnografia e controle de impressões em uma aldeia do Himalaia. [1961] in: ZALUAR, Alba. Desvendando Máscaras Sociais. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1980.

  2. CORBELLE, Florência. La construcción del consumidor de drogas em el processo judicial. Buenos Aires: Faculdad de Filosofia y Letras de la Universidad de Buenos Aires (tesis de licenciatura), 2010.

  3. ______ . Valores morales, amistad y alianzas políticas. El debate parlamentario sobre la actual ley de drogas. Buenos Aires: X Congresso Argentino de Antropologia Social, 2011.

  4. GRILLO, Carolina. Fazendo doze na pista: um estudo de caso do mercado ilegal de drogas na classe média. Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia / Universidade Federal do Rio de Janeiro (Dissertação de Mestrado), 2008.

  5. GRILLO, Carolina; POLICARPO, Frederico; VERÍSSIMO, Marcos. A Dura e o Desenrolo: efeitos práticos da Nova Lei de Drogas no Rio de Janeiro. In: Revista de Sociologia e Política – dossiê Crime, Segurança e Instituições Estatais: problemas e perspectivas. Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 2011.

  6. KANT DE LIMA. Roberto. A polícia na cidade do Rio de Janeiro: seus dilemas e paradoxos. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1995.

  7. ______ . Ensaios de Antropologia e Direito. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2008.

  8. MACRAE, Edward; SIMÕES, Júlio Assis. Rodas de Fumo: o uso da maconha entre camadas médias urbanas. Salvador: EDUFBA, 2000.

  9. MISSE, Michel. Crime e Violência no Brasil contemporâneo: estudos de sociologia do crime e da violência urbana. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006.

  10. SOUSA, Rainer. “Malandragem dá um tempo”: um encontro entre o rock e o samba. In: Revista Chrônidas. Goiânia: Ano II, N° 5 – dezembro de 2009.

  11. VARGAS, Eduardo Viana. “Fármacos e outros objetos sócio-técnicos: notas para uma genealogia das drogas”. In: LABATE, Beatriz Caiuby et alii (orgs.). Drogas e Cultura: novas perspectivas. Salvador: EDUFBA, 2008.


  12. VELHO, Gilberto. Nobres e Anjos: um estudo de tóxicos e hierarquia. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1998.

  13. VERÍSSIMO, Marcos. A Lei e a Moral: Apontamentos para o estudo da lógica jurídico-policial no Brasil, trabalho apresentado nas V Jornadas de Investigación en Antropología Social realizadas em Buenos Aires, 2008.

  14. ______ . A Nova Lei de Drogas e seus dilemas: apontamentos para o estudo das formas de desigualdade presentes nos interstícios do ordenamento jurídico-penal brasileiro. In: Civitas: Revista de Ciências Sociais – dossiê Conflitualidade social e acesso à justiça. Porto Alegre: volume 10-número 2 (maio-agosto), 2010.

  15. ______ . Do maconheiro ao cannabier: os autocultivos domésticos e outras domesticações. São Paulo: XXVIII Reunião Brasileira de Antropologia, 2012.

  16. VIANNA, Letícia. Bezerra da Silva: produto do morro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.



[1] A antropóloga em questão é Florencia Corbelle, doutoranda em antropologia pela Universidad de Buenos Aires e pesquisadora associada ao Equipo de Antropologia Politica y Juriridica, coordenado pela professora Sofia Tiscornia. Seus trabalhos a respeito do consumo de drogas na cidade de Buenos Aires (CORBELLE: 2010 e 2011) tem sido de grande valia para este projeto de tese.


[2] Escrita por ele em parceria com Erasmo Carlos.


[3] Produto da célebre parceria entre Raul e o escritor Paulo Coelho.


[4] Sobre dichavo e explanação, ver: GRILLO: 2008; e VERÍSSIMO: 2012.


[5] Composta por Adelsonilton, Moacir Bombeiro e Popular P.


[6] “Cuca”: cabeça, ou cérebro.


[7] A música foi composta por Adelzonilton e Tadeu do Cavaco.


[8] Música de autoria dele próprio.



*Tomado del Archivo Documental “Cuerpos, sociedades e instituciones a partir de la última década del Siglo XX en Colombia”. Mallarino, C. (2011 – 2016). Tesis doctoral. DIE / UPN-Univalle.


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