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Uma reflexão sobre a medicina Ayurvédica e suas noções de corpo e saúde.



Introdução


Entrando em contato


Sempre tive uma afinidade quase inexplicável com a cultura indiana. Desde os meus 18 anos tenho o hábito da prática do Yoga. A cultura indiana, a partir da visão do Ayurveda, começou a influenciar minha vida com mais intensidade desde 2008, quando comecei a assistir algumas palestras sobre psicologia ayurvédica em uma escola de Yoga, em Florianópolis (no sul do Brasil), onde ocorriam cinco encontros uma vez por semana. Essas aulas, de um modo geral, permitiram que eu desenvolvesse uma análise autoconsciente da minha personalidade e me ajudaram a entender como a visão de mundo do Ayurveda permeia nossas vidas. Ayur, do sânscrito, significa vida, e Veda, ciência, sendo assim traduzido como “ciência da vida”, uma ciência que visa entender os seres vivos de modo integral.


Desse período em diante, minha vida viria a ser permeada por várias mudanças, pois foram momentos de análise de vários condicionamentos e processos que precisavam ser reavaliados. Levei alguns meses para decidir se faria um curso de formação de terapeuta ayurvédico que iria ocorrer a partir do inicio de 2009. Esse curso seria ministrado por um médico de formação tradicional com especialidade em Ayurveda, Dr. José Ruguê, que construiu uma sólida estrutura material para a prática deste sistema de saúde, criando um núcleo de aprendizado e formando diversas parcerias no Brasil e na Índia. Por sua formação no modelo biomédico tradicional, incorporou certa autoridade ao aplicar os conceitos do Ayurveda, transmitindo confiança aos seus pacientes. Nesse processo, começou a dar cursos de formação de terapeuta ayurvédico no Brasil e no exterior, com um discurso de que “não precisamos ser médicos para aplicar o Ayurveda”.


Neste contexto, resolvi fazer o curso com duração de dois anos. Foi um período de muitas descobertas e desde o primeiro semestre comecei a estudar bastante com o objetivo de me tornar uma terapeuta, mas logo percebi que antes disso precisaria me curar primeiro para depois poder curar os outros. Aqui o termo cura significa adquirir uma postura auto-observadora da mente, corpo e condicionamentos. A integralidade do Ayurveda se refere à conexão com os cinco elementos, pancha maha bhutas, e o universo, com o corpo físico, suas tendências mentais, emocionais e o religare com o espírito. Quando tive o meu primeiro contato com o Ayurveda marquei com o professor das palestras de cinco encontros, mencionada no início, uma consulta ayurvédica, quando foi feita uma análise do meu corpo físico, emocional e mental. Esse professor já havia feito o mesmo curso de formação de terapeuta ayurvédico com o Dr. Ruguê, e por sinal, ele me indicou para fazer esse curso. Caracterizou o meu tipo físico como longilíneo, e observou alguns aspectos externos do meu corpo como o formato, coloração e superfície da minha língua, formato dos dentes, formato dos dedos e unhas das mãos e dos pés, a lubrificação da minha pele, o formato e cor dos meus olhos, textura, coloração, quantidade e lubrificação dos cabelos, tonalidade da pele e tonicidade muscular. Fez algumas perguntas sobre a minha fisiologia, se a digestão era boa, sobre o sono, se era tranquilo e restaurador, sentiu os batimentos do meu pulso e por fim perguntou sobre aspectos emocionais e processos mentais.


Durante a consulta ele observou a minha expressão corporal e facial, meu jeito de falar e tom de voz. Enfim, fui classificada como Vata-Pitta e apresentou que meu corpo demonstra ser mais Pitta e a minha mente Vata, afirmando que é comum a mente ser dominada por um dosha e o corpo por outro. Essa especificidade faz com que o Ayurveda veja cada ser humano como ser único composto de uma combinação própria que representa os elementos da natureza água, terra, fogo, ar e éter, em nosso organismo.


Para entender esse mecanismo deve-se fazer a análise da prakriti, constituição particular de cada indivíduo, como foi explicada acima. A noção de corpo no Ayurveda apresenta três tipos de qualidades físicas da natureza humana ou doshas, que compõem a noção de prakriti, que seriam Vata (éter + ar), circulação e movimento, Pitta (fogo + água), digestão e metabolismo e Kapha (água + terra), estrutura e forma. Os doshas são considerados os princípios governantes de toda a fisiologia e existem em cada ser humano nessa combinação estrutural única. Entretanto quando estão em desequilíbrio se equivalem às toxinas, que estão relacionadas à disseminação das doenças. Esse “desequilíbrio” se baseia no pressuposto de que semelhante aumenta semelhante, onde fogo aumenta fogo, ar aumenta ar, assim por diante.


Na consulta foram detectados alguns desequilíbrios do dosha Vata, tais como hiperatividade, ansiedade, déficit de atenção e suas consequências no corpo físico, fome instável, emagrecimento, períodos cíclicos de fadiga durante o dia. É interessante, pois nunca havia percebido com tamanha clareza os meus processos emocionais, pois sempre estive envolta neles numa espécie de cegueira. Deixo claro aqui que essa fase da minha vida foi conturbada em especial e estava literalmente desconectada. Com essa consulta comecei a me perceber e ao mesmo tempo me estranhar como se estivesse olhando para um espelho. Foram recomendadas algumas medidas para reduzir esses desequilíbrios. Pelo fato de Vata ser um dosha frio, seco e ativo mentalmente foram recomendadas medidas com qualidades opostas, tais como: dormir 8h por dia, deitando antes das 23h; reduzir o ritmo de vida mental; aquecimento do corpo, chá de ervas que reduzem Vata (que seriam as mais suaves como erva-doce, camomila, capim-cidreira), bolsa de água quente no ventre, banhos quentes, evitar correntes de vento na nuca e evitar que os pés fiquem frios, massagem com óleo de gergelim aquecido na cabeça, mãos e pés; caminhada de 30min para aterramento e absorção de Prana, energia vital, entre as 16h e 18h. Através da minha língua ele observou que tenho tendência a acumular tensões na coluna e foi recomendado que fizesse no fim do dia, duas saudações ao sol incrementadas com torções, em ritmo lento com quatro respirações em cada postura. Uma medida de desintoxicação do sistema digestivo também foi indicada, pois foi diagnosticado Ama, sugerindo toxinas sob a minha língua. Então todos os dias em jejum foi sugerido que tomasse meio copo de água morna com quatro gotas de limão e uma mínima pitada de sal. Foi sugerido também que eu seguisse uma dieta alimentar harmônica para o dosha Vata que, segundo Tiwari:


(...) consiste na ingestão de alimentos de sabor doce que aumenta os tecidos do corpo, nutre, conforta o corpo e alivia a fome; os elementos água e terra produzem o sabor doce que incluem carboidratos, açúcares, gorduras e aminoácidos; a maioria dos grãos e frutas é doce. Alimentos de sabor azedo que ajudam na digestão e eliminação de resíduos do corpo e é formado pelos elementos terra e fogo; todos os ácidos orgânicos são considerados azedos; muitas frutas, como o limão, limas, morangos, são considerados azedos com um leve sabor doce; todas as comidas fermentadas, como o missô, molho de soja, yogurt, pickes, são considerados azedos. O alimento de sabor salgado limpa os tecidos do corpo e ativa a digestão; esse sabor é formado pelos elementos água e fogo e existe em todos os sais e algas marinhas; a maioria dos vegetais aquosos como a abobrinha, pepino, tomate, têm naturalmente mais sódio (Tiwari, 1995: 59).


Confesso que inicialmente senti um pouco de resistência ao tentar incluir essas sugestões em minha rotina diária, mesmo sabendo dos meus desequilíbrios e que tudo serviria para me deixar melhor. E fui incluindo tudo bem devagar respeitando o meu tempo para iniciar esse processo e aos poucos já fui me sentindo melhor. A vivência dessa experiência e mais outro curso rápido de um final de semana, que fiz em São Paulo sobre Ayurveda, focado na saúde da mulher, me fizeram sentir mais segura para tomar a decisão de iniciar o curso de dois anos.


Não sei porque me deixei levar por essa filosofia de saúde indiana, talvez pelo fato de ter uma afinidade com a cultura e também por ter passado naquela época por uma fase crítica da minha vida. Penso que uma probabilidade, de acordo com o estudo de Maluf (2007:5), pode se encaixar em minha trajetória, marcada por uma “crise pessoal”, onde depois tive uma primeira experiência com o Ayurveda da forma como apresentei, em seguida uma “iniciação”, marcada com o início do curso de dois anos, o “conhecimento” obtido no curso, a utilização de um repertório utilizando as práticas terapêuticas e espirituais do Ayurveda e a possibilidade de tornar-me terapeuta. Todos esses aspectos são discutidos a partir da noção de “condição terapêutica”, onde a experiência terapêutica e espiritual se transforma num verdadeiro modo de ser, um estilo, um projeto de vida. Talvez se todo esse cenário que apresentei, o Ayurveda fosse trocado por um sistema de saúde chinês, eu tivesse me tornado uma terapeuta da filosofia chinesa a qual aprecio da mesma forma, principalmente por haverem similaridades nas visões sobre a integralidade do corpo, emoções e mente.


Até hoje venho aplicando na minha vida e de forma profissional como terapeuta, as diversas terapias do Ayurveda. Nesse processo surgiu a intenção de aprofundar os estudos do Ayurveda através da Antropologia. Tentarei, portanto, interpretar o meu comportamento por meio do sentido que essa filosofia de cura se deu à minha visão de mundo. Aproveitando o verbo “interpretar” podemos fazer uma referencia a Geertz (1989) que com sua visão semiótica das culturas, através de uma abordagem hermenêutica nos possibilitou uma ampliação do olhar para os sujeitos, culturas ou objetos a serem pesquisados.


Posso considerar primeiramente que senti uma espécie de rito de passagem, lembrando o conceito de liminaridade de Turner (1974:117), no momento que iniciei meus estudos sobre o Ayurveda. Durante o curso de dois anos tive a oportunidade de aprender mais a fundo como é pensada essa filosofia indiana de saúde e como é transmitida para ocidentais no sul do Brasil, em um curso de formação. No curso tivemos aulas teóricas e práticas com ensinamentos sobre plantas medicinais, procedimentos de massagens, orientação alimentar e da rotina diária, aromaterapia, cromoterapia, psicologia védica, visão do Ayurveda sobre a existência humana, terapias de desintoxicação e rejuvenescimento. Posso dizer que a conexão que tenho com o meu corpo atualmente é bem diferente do que tinha antes de ter entrado em contato com o Ayurveda. No início era muita informação como estivesse se abrindo um portal de conhecimento e aos poucos fui absorvendo tudo e noto que ainda há muito que aprender. O fato de o curso ter sido em módulos facilitou esse processo de compreensão e possibilitou períodos de prática dos procedimentos permitindo um espaço para tirarmos possíveis dúvidas durante as aulas. Particularmente as aulas práticas eram as minhas preferidas, pois com elas conseguia ver, em todos os sentidos, como o Ayurveda se manifesta por meio das práticas terapêuticas. Dos inúmeros procedimentos do Ayurveda foram a mim aplicados apenas alguns, dos quais somente dois vou a seguir mencionar nesse ensaio. É importante mencionar que sempre antes de qualquer procedimento é invocada a presença do mestre Dhanvantari, com um canto mantra, considerado o pai do Ayurveda que abençoa e protege quem aplica e quem recebe as terapias.


Sintonizando com os processos


O que mais me chamou atenção nessa filosofia de cura durante o curso e até hoje, é que a “farmácia” está literalmente na cozinha e no jardim ou horta. Todos os manipulados, óleos medicados, tinturas, feituras de massas especiais (como se fossemos fazer um pão) para procedimentos específicos, a feitura da Ghi, uma manteiga com pouca lactose que é usada na alimentação e em procedimentos terapêuticos, são elaborados na cozinha. Passamos boa parte do curso na cozinha preparando as substâncias específicas para os procedimentos a serem efetuados. Ao prestar atenção na minha alimentação, em tudo que alimenta e “entra” pela minha boca, também abri meu olhar para o que “sai” do meu corpo, minhas secreções, excreções, sintonizando com a minha natureza, observando os processos e o funcionamento do meu corpo. Percebi através do Ayurveda que a qualidade das minhas emoções também pode influenciar muito na qualidade das minhas excreções e processos do meu corpo.


A visão de saúde do Ayurveda tem como sua principal característica a prevenção por meio da alimentação, então nas próprias refeições são acrescidos temperos e sabores que proporcionem uma melhora de qualquer desconforto ou desequilíbrio. O objetivo do Ayurveda é manter a saúde sem nenhum remédio. A rotina diária ou dinacharya objetiva preservar a harmonia dos estados físico e psicológico e se dá por meio da criação de hábitos saudáveis segundo o Ayurveda.


O Ayurveda possui diversos tratamentos e também cinco métodos terapêuticos de “desintoxicação” (Panchakarma) para eliminar os doshas agravados segundo Carneiro (2007:188), que seriam: terapia emética, (Vamana) para eliminar o agravamento do dosha Kapha; terapia de purgação (Virechana) que elimina o agravamento do dosha Pitta; terapia por enema (Vasti) que elimina o agravamento do dosha Vata; terapia nasal (Nasya) que elimina os doshas agravados na região da cabeça, geralmente excesso de Vata e ou Kapha; métodos pós-panchakarma (Paschat karma) onde após a eliminação dos doshas agravados consiste em recuperar a vitalidade do organismo. Essas formas de desintoxicação dos materiais de excreção, que são provocadas a serem externalizadas pelos procedimentos do Ayurveda, podem ao mesmo tempo gerar repulsa nos indivíduos, mas também criar uma aproximação para com a sua própria natureza. De acordo com Rodrigues (2006:145), as secreções do corpo humano correspondem a atividades naturais que escapam do controle cultural e ao rejeitar o que em si é natur